terça-feira, 26 de maio de 2009

O SILÊNCIO II


Reconheço a minha dificuldade por vezes em lidar com o silêncio que vem dos outros, então para ultrapassar e dizer o que me vai na alma, passarei a descrever o meu dia de ontem, preenchido com alguns momentos de silêncio em circunstâncias diferentes, procurando entender-me e entender os outros.

O dia de ontem, segunda-feira, inicia-se com uma viagem a Trás-os-Montes (Chaves) percorrida por Ourense-Verín, com o objectivo levar o meu pai a visitar seu pai e, visitar meu avô, hospitalizado. Após a burocracia do Hospital para visitarmos o nosso familiar, vimo-nos obrigados a entrar pela porta do cavalo. Finalmente chegamos ansiosos ao Piso 5, Medicina 2 ENF. 2 Cama 6. (O seu quadro clínico com noventa e dois anos é flutuante entre uma pneumonia grave e a extracção recente de um carcinoma no nariz que ultrapassou a pele.).


Não é fácil estabelecer o encontro com alguém que nos segurou a mão, trabalhou horas a fio os campos com as mesmas mãos e, agora todos os seus órgãos se remeteram ao silêncio, em que o que ressalta é o esforço em respirar pela boca e o barulho das máquinas. Estacada bem à sua frente ele não me vê, não me ouve, será que não me sente? É um estado em que somos obrigados a remetermo-nos ao seu silêncio e às memórias de outros momentos. Senti-me inútil pois o meu desejo em confortá-lo como o fizera outrora, tinha mudado. Agora, mantive-me conversando com ele em que as palavras surgiam mentalmente mas não chegavam à boca, pretendia que o seu coração ouvisse e já não os seus ouvidos. Este traduzia o primeiro momento em que me encontro com o silêncio, mas este teimava não ser o único.

Ao seu lado na cama 5 um Homem, com alguma idade, cabelo e barba completamente branco, sobre uma pele bem morena, com marcas de queimaduras antigas, ressaltavam os seus olhos azuis ternurentos. “Magro como as palhas”, estatura bem alta em que a magreza ressaltava todos os ossos e todos os movimentos internos do seu corpo, como se a sua pele fosse transparente. Era um ser desconhecido que me olhava e que provavelmente me queria dizer algo, mas na linguagem onde o silêncio do momento é avassalador… aproximei-me. Reparei que queria puxar o leve lençol. Tinha os braços presos à cama e estava ligado ao soro. À medida que me aproximo ele fala comigo e diz-me baixinho, pois poucas eram suas forças: «Nunca fiz mal a uma mosca», repetidamente, eu escutava novamente. Não tive palavras, olhei-o dentro dos seus olhos redondos azulados e acariciei o seu rosto. Ali estávamos nós os dois dando algum calor aquele silêncio do momento. Repeti este gesto, enquanto me dizia ter perdido a mulher e que se conseguisse fugir dali nunca mais voltaria. Mantive-me ainda mais algum tempo cobri-o, e ele esforçava-se por fechar os seus olhos, mas em poucos segundos os voltava abrir. Continuei tocando o seu braço e o seu peito para que sentisse que ainda ali estava. Mas não pude permanecer o tempo que desejávamos, chegou o lanche e tive de abandoná-lo naquele silêncio.

Aquele silêncio é extremamente “pesado” pois estou diante de homens fortes, que se debatem entre resistir ao fio da vida, e querer sair dali, para onde… não sei. Talvez voltar para a vida que tiveram, ou talvez algum arrependimento… que só chega quando se encontram ali sozinhos em silêncio, despidos de coragem, de arrogância, de grandes actos… resta-lhes a pele e osso.

As horas continuavam a marcar o tempo e o silêncio, o dia ainda continuava e mais tarde após este dia um último momento de silêncio. Este estabelece-se com outro ser masculino com quem venho ou vimos a travar algum conhecimento afectivo e que desde domingo passado, entre telefonemas e mensagens, surge como resposta: o seu silêncio. Silêncio este sem um porquê? Mas que me obriga a ficar em silêncio com poucas forças após um dia repleto de emoções. Como entender, que duas pessoas na flor da vida se remetam a este silêncio, quando um dia serêmos tomados pelo silêncio sem termos optado. Ou será que a condução das nossas vidas limita a forma desse silêncio?

Antes de adormecer, peguei no meu fiel amigo Mohandas K. GANDHI: a minha vida e as minhas experiências com a verdade. Procuro juntamente com ele o entendimento da sua vida e que este me possa levar ao entendimento da minha. Digamos que estabeleço sempre que posso um diálogo profundo entre cada passo dado, os que dei hoje e preparar-me para os ainda não chegaram.
No livro (a parte que acompanho actualmente) GANDHI conta a sua vida no momento que vai estudar para Inglaterra em vários episódios que marcam a sua experiência. Um desses momentos intitulado 18. a timidez é o meu escudo, (página 73) fala sobre o silêncio e diz-nos o seguinte: «a experiência ensina que o silêncio faz parte da disciplina espiritual daquele que busca a verdade. A tendência para o exagero, para suprimir ou adulterar a verdade, consciente ou inconscientemente, é uma fraqueza do homem, e o silêncio é necessário para que se possa superar estes momentos.»
Reflectindo sobre as palavras de GANDHI, transportadas para os momentos vividos em silêncio de ontem - poderemos dizer que o meu avó, aquele desconhecido e até mesmo o ser masculino afectivo de que vos falei - estarão naquela condição face a face com a verdade? Terá chegado o momento consciente de toda a verdade das vidas deles? Não tendo uma resposta, espero chegar a esse momento enquanto os meus órgãos não entraram em silêncio, num adormecimento que não respondem aos estímulos, aos sentidos… que não respondem ao outro ser que está diante deles.

Nunca estou preparada para me remeter ao silêncio, ao silêncio dos outros… poderemos ficar em silêncio não impondo aos outros o nosso? Tudo é uma aprendizagem, iniciamos quando reflectimos.



Este dia leva-me a repensar a nossa forma de vida, para nós próprios, para todos os outros seres com os quais nos cruzamos... e que se verdadeiramente respeitarmos e amarmos chegaremos a esse estado? Temos de evoluir, num processo lento? Será essa a razão do nosso ser... estou em vigia...

3 comentários:

  1. Ora aqui está um silêncio sentido e que te deixou ferida interiormente...
    O texto, por demais bem escrito, é de um realismo que nos deixa inquietos.
    Mas, minha querida amiga, há palavras que por tão fora da realidade, por tão fantasiosas, por tão próximas da demência, por certo preferido que em silêncio se tivessem tornado.

    Um beijo e o melhor possível para o teu Avô.

    ResponderExcluir
  2. João... obrigado por se manter com olhar atento... como quando se prepara para captar uma fotografia e claro sempre sensível. Para mim é um prazer! Existem silêncios que nos ferem, existem falsas palavras que nos destroem, assim como existem pequenos momentos que nos dão força, paz e continuo a acreditar que dentro de mim existe um grande amor em evolução seja qual for o silêncio,a palavra ou "não palavra"... ele vibra na direcção do bem amar e desejar. O aprendizado continua! Bem Haja meu querido

    ResponderExcluir
  3. O "preferido" na última linha é

    PREFERIAS (óbvio)

    ResponderExcluir

[atravesso o vidro através do som]

Algo excêntrico, alucinador «The official video for Hard Times, taken from the album 'The Bachelor' - released in June 2009. Directed by Ace Norton.»